sexta-feira, 29 de março de 2019

Quaresma, em dimensão Vicentina


QUARESMA VICENTINA, PEREGRINAÇÃO AO CORAÇÃO: UM CAMINHO DE PERGUNTAS

“O pó que foi o nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó.” P. António Vieira

 Com a frase ‘Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar!’ e com a imposição das cinzas, na forma de cruz, damos início ao percurso de quarenta dias que antecede e prepara a Páscoa. Um tempo forte de conversão para dar à nossa vida a direção certa. Em Génesis vemos que o “Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida” (Gn 2, 7). Esta passagem lembra-nos que sem o sopro divino de Deus o pó da terra continuaria pó da terra. Sem Deus ou fora Dele somos apenas e somente pó!

Como nos diz o Papa Francisco “Os grãos de cinza que receberemos pretendem dizer-nos, com delicadeza e verdade: de tantas coisas que trazes na cabeça, atrás das quais corres e te afadigas diariamente, nada restará. Por mais que te afadigues, não levarás contigo qualquer riqueza da vida. As realidades terrenas dissipam-se como poeira ao vento. Os bens são provisórios, o poder passa, o sucesso declina. A cultura da aparência, hoje dominante e que induz a viver para as coisas que passam, é um grande engano. Pois é como uma fogueira: uma vez apagada, ficam apenas cinzas. A Quaresma é o tempo para nos libertarmos da ilusão de viver correndo atrás de pó. Quaresma é descobrir que somos feitos para o fogo que arde sempre, não para a cinza que imediatamente desaparece; para Deus, não para o mundo; para a eternidade do Céu, não para o engano da terra; para a liberdade dos filhos, não para a escravidão das coisas.”

Uma virtude essencial para viver verdadeiramente a Quaresma é a humildade. Da mesma família etimológica que húmus e homem, a humildade aparece como chave para nos colocarmos no caminho do Amor. Uma humildade que, não só nos faz reconhecer o que somos e o que devemos ser, onde estamos e para onde devemos ir, o que fazemos e o que deveríamos fazer, mas descentra o nosso olhar sobre nós mesmos para olhar para Aquele que caminha connosco e em nós, e está sempre pronto a pôr mãos-à-obra, assim que recorremos a Ele. “Debaixo das cinzas da humildade, no espírito de Nosso Senhor” (SVP VIII, 176), encontramos o caminho para perceber se vivemos para o fogo ou se vivemos para as cinzas. Só o fogo do amor salva!

Para este caminho de oração e conversão proponho um exame de consciência, em forma de perguntas, que penso, útil para todos nós, missionários vicentinos:

I. “Contemplativo na ação e apóstolo na oração” - Opção fundamental pelos pobres.
A opção pelos pobres está enraizada em todas as minhas ações e em todas as minhas escolhas? Esta opção realiza-me? Vejo os pobres, descubro onde estão e vou ao seu encontro? Procuro encontrar justificações forçadas que mascarem a inexistência de um contacto verdadeiro com o pobre? Procuro refletir quais as novas categorias de pobreza que hoje existem, seguindo o exemplo de São Vicente de Paulo que, seguindo o espírito de Cristo, trabalhou com as franjas da sociedade do seu tempo? Os mais pobres, os mais desfavorecidos, os mais carentes da presença do Evangelho são sempre a minha primeira preocupação e o meu principal critério quando tomo decisões na minha vida, no meu grupo, na minha associação, na minha congregação? Quando sou chamado a evangelizar os pobres refugio-me no anúncio da Boa Nova relegando para outros o serviço prático, ou, pelo contrário, concentro o meu apostolado nas obras? Refugio-me nas MINHAS mil atividades esquecendo-me que sou um mero instrumento nas mãos de Deus e que tudo me foi dado para levar os homens a glorificar Deus? (cf. Mt 5, 16) Perco-me em discussões e reuniões infinitas para disputar poder, riqueza e reconhecimento, ou gasto a minha vida ao serviço de Deus nos pobres?

II. Estar atento à realidade que me envolve.
Qual é a minha presença no mundo que me envolve? Uma presença superficial ou envolvo-me concretamente na promoção de um mundo mais justo, quer a nível material quer a nível de valores? Os problemas do mundo só me mobilizam quando de alguma forma ‘sofro na pele’ com eles? Discuto e estudo, com outros, as mudanças do mundo e das pessoas? Concretizo possíveis soluções para resolver os problemas encontrados? Avalio a minha ação e abraço novas respostas, caso seja necessário? Visto a camisola da defesa dos direitos humanos e colaboro diretamente com associações ou movimentos que promovem a paz e a justiça?

III. Aprender com os pobres.
Os pobres são para mim uma verdadeira e constante escola de evangelização, ou tenho faltado às aulas? Os pobres são uma realidade artificial e relativa, pois nenhum é pobre o suficiente para me fazer “sair do sofá” ou em todas as pessoas posso encontrar formas de pobreza que justificam o meu “trabalho constante” com os pobres? Para melhor os ajudar tenho de sentir na pele as suas dificuldades. Vivo a pobreza? Como faço para experimentar as condições dos pobres? Aceito as condições/condicionantes das missões que faço? Adequo-me ao lugar onde estou, utilizando os meios que estão à minha disposição? Vivo como aqueles a quem sirvo, de forma a servi-los, ou escandalizo os outros com o meu modo de viver? Os grupos, movimentos, paróquias, associações, nas quais estou inserido, e que se dizem vicentinas, têm o pobre como seu carisma? Reconheço-me pobre diante de Deus oferecendo-Lhe toda a minha vida, a vida de todos aqueles que sirvo e a vida de todos aqueles que não têm quem reze e olhe por eles?

IV. “O Senhor...enviou-os dois a dois”
São os ‘meus’ pobres e a ‘minha’ missão, ou tudo o que faço é em nome da minha comunidade ou do meu grupo? O que sabem os outros da missão que faço? Quanto me interesso pelo trabalho desenvolvido pelos meus “companheiros de caminho”? São Vicente pensou sempre no trabalho em equipa, em comunidade, e qual é a minha postura? Bloqueio o trabalho com aqueles com quem devo trabalhar? Construo pontes no trabalho de equipa valorizando cada um, como é, para um trabalho frutuoso em conjunto, ou construo muros para que tudo o que faça tenha apenas um protagonista: eu próprio? Apresento-me com uma atitude construtiva, de permanente descoberta e aprendizagem, como uma esponja que tudo absorve para ser útil aos outros, ou encontro-me sempre fechado, cheio de certezas, intransigente face a opiniões diversas da minha, como uma rocha impermeável que tantas vezes é arremessada? Fomento o diálogo, a contestação, a participação nas decisões, a divisão de responsabilidades? Quando sou responsável por um grupo ou comunidade procuro desenvolver e estimular as qualidades de cada um dos seus membros? Animo o seu crescimento espiritual e ajudo a gastarem as suas vidas por Jesus Cristo, ou exerço a minha autoridade de forma implacável, absorvendo todas as tarefas e limitando responsabilidades individuais, tornando todos reféns da minha presença/decisão e com medo de caminharem pelos próprios pés.

V. Não sou daqui nem dali, mas de onde Deus quiser que eu esteja.
Sou o rosto e a alma do trabalho que faço ou deixo que Cristo assuma esse lugar? Sou uma pessoa desprendida e livre, ou apodero-me das tarefas que me foram confiadas e preocupo-me em manter, a todo o custo, a minha posição? Sou uma pessoa disponível ou fechada? São Vicente apelava, às irmãs, que tivessem por mosteiro a casa dos doentes, por cela um quarto de aluguer, por capela a igreja paroquial, por claustro as estradas da cidade… A mim, o que diria São Vicente? Diria que estou acomodado? Que procuro uma vida fácil, inserido nas estruturas existentes e pré-definidas? Que procuro fazer tudo sempre da mesma forma porque ‘se fez sempre assim’? Que não quero renovação, porque os mais novos não me percebem, não me respeitam, não sabem fazer bem as coisas? Diria que não quero deixar as responsabilidades que me foram atribuídas há anos? Que não quero mudar de grupo, fingindo que ainda me enquadro? Que não quero mudar de comunidade, porque é aqui que estão os meus amigos ou família? Vivo para a minha ‘capelinha’ ou realmente vivo para a missão de Cristo? Procuro refletir sobre o futuro e ajudar no crescimento universal da missão, ajustando-me e vendo nas mudanças uma oportunidade de manter viva a chama do carisma vicentino, ou, pelo contrário, perco-me em lutas e esquemas para manter-me onde quero e como estou, assumindo o lugar da Providência?

VI. Conversão: um caminho para a vida!
Qual a minha relação com Deus? Como vai o meu caminho de conversão: estou parado? “Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito.” (Rm 12, 2) Como aprofundo a minha configuração a Cristo? Como sigo o exemplo de São Vicente de Paulo? Aprofundo a minha paixão pelo Santo da Caridade? Com que frequência, bebendo da fonte, me deixo seduzir e estimular pelas palavras de São Vicente? Como posso seguir ao encalço do seu exemplo, como seguidor de Cristo, sem me esforçar a cada dia por conhecer melhor o seu pensamento? Se eu não deixar Jesus brilhar através de mim, se a chama do meu carisma tem falta de combustível, como posso atrair outros à beleza deste caminho? 

Francisco Vilhena

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