A propósito da Semana do Consagrado, uma reflexão do Pe Jaime Cruz
SÃO VICENTE DE PAULO E A VIDA CONSAGRADA
“ É próprio dos grandes corações descobrir a principal
necessidade dos tempos em que vivem e consagrar-se à sua solução”.
Aplicando a S. Vicente de Paulo esta densa afirmação de
Lacordaire e mergulhando o mais possível em suas raízes, seremos surpreendidos
pela rara envergadura do Santo da Caridade e pela profundidade e novidade de
suas intuições e realizações no campo da evangelização dos pobres.
A presença e compreensão da tríade: Cristo, Igreja, Pobre, é
condição indispensável para abarcar e penetrar no âmago das suas muito e
oportunas obras. É o que faremos ao considerar o tema em epígrafe.
Um privilegiado observador da Vida Consagrada
Pela natural maneira de ser, bem como por todo o seu
itinerário sócio- religioso, S. Vicente era um homem profundamente aberto à
sociedade, atento à marcha da Igreja, preocupado com a fidelidade ao Espírito.
É este que, em cada momento da história, desperta formas de vida que atestam a
presença de Deus e faz surgir homens privilegiados, capazes de interpretar e
assumir a vontade divina, encarnando-a na realidade concreta e na marcha da
salvação.
O carisma dos Fundadores revive a Instituição à qual deu
início. Homem de amplo saber e largo círculo social, o nosso santo depressa se
deu conta de que a instituição da Vida Consagrada, na sua maioria, vivia muito
alheia ao momento presente, “monasticisada” em demasia.
Foi particularmente enriquecedor este contacto. Por dever de
ofício e sobretudo como membro do Conselho de Consciência, contribuiu para a
renovação de várias ordens. O elemento principal, constitutivo do estado
religioso, era o compromisso de viver de acordo com os conselhos Evangélicos,
assumidos mediante votos solenes. Esta solenidade canónica dos Votos reduzia a
pluralidade das Instituições e dificultava a resposta adequada aos “sinais dos
tempos”.
Abelly confirma a estima e apreço que o Senhor Vicente
sentia pelo estado religioso.
A necessidade de algo diferente
Na Conferência de 07.11.1659, ao tratar dos votos, sublinha
S. Vicente os valores constitutivos do tradicional estado religioso. Quase a
meio da conferência, lança a pergunta: é esse o estado a que Deus nos chama?
Não. Porque somos sacerdotes seculares que nos colocamos no estado que Nosso
Senhor escolheu para si mesmo. Temos tudo o que têm os religiosos. Como bom
canonista, adianta: - Os religiosos comprometem-se mediante votos solenes,
enquanto os missionários não os emitem.
Quando, após aturadas diligências, consegue aprovação dos
votos sem que a congregação seja considerada como “religiosa”, escreve: “A
Divina Providência de Seus inspirou finalmente à companhia esta santa invenção
de nos colocar no estado em que, tendo a felicidade do estado religioso, graças
aos votos simples, continuamos no entanto entre o clero e em obediência aos
Senhores Bispos, como os mais humildes sacerdotes de suas dioceses, em
referência aos nossos trabalhos”. (III,224)
Noutra parte, pede se dê graças por nos encontrarmos na
religião de S. Pedro, ou melhor de Jesus Cristo. “Salvador meu! Esperastes 1600
anos para suscitar uma companhia que fizesse profissão expressa de continuar a
missão que o Pai vos confiou na terra”. (XI,639)
Na perspectiva da dimensão cristocêntrica, a dos
compromissos, prorrompe em júbilo: “Não é para nós irmãos, uma felicidade
imitar, de maneira tão simples, a vocação de Jesus Cristo? Quem continua,
melhor que os missionários, a vida que Jesus Cristo levou na terra?”
Surge um instituto verdadeiramente original que dá pelo nome
de Congregação da Missão. Afirma-se ainda maior ousadia na instituição das
filhas da Caridade.
Enamorado de Cristo, discípulo da realidade, com profundo
sentido eclesial e rara visão do pobre, também na sua fundação, entendemos as
motivações e a finalidade a partir da tríade: Cristo, Igreja, Pobre. A
estrutura religioso-jurídica é flexibilizada em proveito da finalidade
apostólica. Mantém-se, no entanto, uma genuína espiritualidade, dado que a CM
deve fazer suas as disposições de Cristo: amor e reverência ao Pai, caridade
compassiva e eficaz com o pobre, docilidade à divina Providência.
Muito antes de surgirem as Sociedades de Vida Apostólica, já
Vicente de Paulo avançava – e de que maneira! – nesse caminho…
Aos Institutos de Vida Consagrada (no sentido jurídico)
assemelham-se as Sociedades de Vida Apostólica cujos membros, sem votos
religiosos, buscam o fim apostólico próprio da Sociedade e, levando vida
fraterna em comum, segundo o modo próprio, aspiram à perfeição da caridade,
pela observância das Constituições.
Entre estas, existem sociedades cujos membros abraçam os
Conselhos Evangélicos mediante um vínculo determinado pelas Constituições. É
fundamental, para S. Vicente, incidir no Cristocentrismo e no ter presente e no
ter presente a finalidade apostólica, evangelizadora, devendo esta condição
imprimir a tudo uma dinâmica de encarnação e de abertura.
Se não há atenção à finalidade, se a mesma não é actualizada
constantemente, a Sociedade em questão perde a sua razão de ser. Daqui a quase
obsessão do Santo em lembrar a identificação com Cristo, Enviado do Pai,
Evangelizador e Servo dos pobres.
É, aliás, o próprio Direito Canónico a afirmar como primeiro
elemento constitutivo de tais Sociedades a finalidade apostólica própria. “Nosso
Senhor veio ao mundo, enviado pelo Pai a evangelizar os pobres – evangelizare
pauperibus misit me -, como, pela graça de Deus, trata de fazer a pequena
Companhia, pois esta é a nossa finalidade.” (IX,323)
A expressão “demo-nos a Deus”, tão utilizada pelo santo,
exprime o insistente convite a uma consagração total à missão de Jesus Cristo
que, para cumprir a vontade do Pai, levando a Boa nova aos pobres, foi até à
Cruz.
Uma palavra-chave
“Estado de caridade” é uma expressão particularmente querida
a S. Vicente de Paulo, e, com ela, pretende traduzir, de modo feliz, a novidade
de suas grandes fundações. Diríamos que, ao modo de exercer a entrega a Deus
para viver a caridade para com Deus e o pobre, à forma de tornar efectivo o
Evangelho anunciado o Reino de Deus e prolongamento a missão de Cristo, chama o
Santo “estado de caridade”.
Torna-se assim uma expressão identificadora, que aglutina o
conteúdo da Caridade-Missão, tão marcante na caminhada do santo e manifestação
completa do carisma que nos legou.
Os Padres da Missão e as Filhas da Caridade tornar-se-ão
discípulos de Jesus Cristo e viverão a Castidade, Pobreza e Obediência,
emprestando-lhes o estilo próprio do “Estado de Caridade” que é o seu e S.
Vicente define sempre em perfeita fidelidade ao Evangelho.
“Dos religiosos, diz-se que estão num estado de perfeição.
Nós não somos religiosos, mas podemos dizer que estamos num “estado de
Caridade”, já que estamos continuamente ocupados na prática efectiva do amor ou
em tensão para ele” (XI, 654)
Não há dúvida de que, tendo presente a prática do Fundador e
o melhor do seu legado, Cristo encarnado para evangelizar e servir
preferentemente os pobres, Missionário do Pai e Caridade Perfeita, é a fonte, o
princípio dinamizador e o eixo unificador do modo de ser vicentino no mundo.
Não admira que assim seja, visto que, desde a sua ascensão
na “conversão”, se deixou mobilizar, interpelar e conduzir pelo Cristo…
- Adorador do Pai,
- Servo do Seu desígnio de amor
- E portador da Boa Nova aos pobres.
Foi Cristo que levou este homem a fazer da sua vida uma
história de doação em expansão. Foi o seu Espírito que o fez passar da defesa
do religioso à paixão do Histórico, da nostalgia do passado à contemplação do
futuro.
Nunca se cansou de proclamar o primado absoluto de Deus,
vivido no serviço e na missão, cujas linhas de acção e estatuto jurídico
definiu com tanta inspiração e êxito.
Nele a conformidade, tão perfeita quanto possível, com a vontade
de Deus, exprime-se essencialmente por meio da caridade que vai ao encontro das
necessidades dos homens e particularmente dos pobres na sua situação concreta.
Finalizando…
Vicente de Paulo avançou com projectos cuja ousadia e
frescura ainda hoje nos encantam.
Teve uma imensa influência no evoluir da Via Consagrada;
também nisso é um “santo moderno”.
À sua comunidade deixou o melhor de si: uma espiritualidade
toda assumida em função da reprodução de Cristo evangelizador dos pobres, fonte
e modelo de toda a Caridade.
Na referência a Cristo e aos pobres, num mundo a fermentar
evangelicamente, temos a origem da espiritualidade vicentina.
É uma mina riquíssima a explorar com muito proveito.
Pe Jaime Cruz
Nota: Na elaboração
deste trabalho consultei preferencialmente DICIONÁRIO DE ESPIRITUALIDAD VICENCIANA
da editorial - CEME.
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