QUARESMA
VICENTINA, PEREGRINAÇÃO AO CORAÇÃO: UM
CAMINHO DE PERGUNTAS
“O
pó que foi o nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque
caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos
apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos
chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda
juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó.” P.
António Vieira
Como nos diz o Papa Francisco “Os grãos de cinza
que receberemos pretendem dizer-nos, com delicadeza e verdade: de tantas coisas
que trazes na cabeça, atrás das quais corres e te afadigas diariamente, nada
restará. Por mais que te afadigues, não levarás contigo qualquer riqueza da vida.
As realidades terrenas dissipam-se como poeira ao vento. Os bens são
provisórios, o poder passa, o sucesso declina. A cultura da aparência, hoje
dominante e que induz a viver para as coisas que passam, é um grande engano.
Pois é como uma fogueira: uma vez apagada, ficam apenas cinzas. A Quaresma é o
tempo para nos libertarmos da ilusão de viver correndo atrás de pó. Quaresma é
descobrir que somos feitos para o fogo que arde sempre, não para a cinza que
imediatamente desaparece; para Deus, não para o mundo; para a eternidade do
Céu, não para o engano da terra; para a liberdade dos filhos, não para a
escravidão das coisas.”
Uma virtude essencial para viver verdadeiramente a
Quaresma é a humildade. Da mesma família etimológica que húmus e homem,
a humildade aparece como chave para nos colocarmos no caminho do Amor. Uma
humildade que, não só nos faz reconhecer o que somos e o que devemos ser, onde
estamos e para onde devemos ir, o que fazemos e o que deveríamos fazer, mas
descentra o nosso olhar sobre nós mesmos para olhar para Aquele que caminha
connosco e em nós, e está sempre pronto a pôr mãos-à-obra, assim que recorremos
a Ele. “Debaixo das cinzas da humildade, no espírito de Nosso Senhor” (SVP
VIII, 176), encontramos o caminho para perceber se vivemos para o fogo ou se
vivemos para as cinzas. Só o fogo do amor salva!
Para este caminho de oração e conversão proponho um
exame de consciência, em forma de perguntas, que penso, útil para todos nós,
missionários vicentinos:
I. “Contemplativo na ação e apóstolo na
oração” - Opção fundamental pelos pobres.
A opção pelos pobres está enraizada em todas as
minhas ações e em todas as minhas escolhas? Esta opção realiza-me? Vejo os
pobres, descubro onde estão e vou ao seu encontro? Procuro encontrar justificações
forçadas que mascarem a inexistência de um contacto verdadeiro com o pobre?
Procuro refletir quais as novas categorias de pobreza que hoje existem, seguindo
o exemplo de São Vicente de Paulo que, seguindo o espírito de Cristo, trabalhou
com as franjas da sociedade do seu tempo? Os mais pobres, os mais
desfavorecidos, os mais carentes da presença do Evangelho são sempre a minha
primeira preocupação e o meu principal critério quando tomo decisões na minha
vida, no meu grupo, na minha associação, na minha congregação? Quando sou chamado
a evangelizar os pobres refugio-me no anúncio da Boa Nova relegando para outros
o serviço prático, ou, pelo contrário, concentro o meu apostolado nas obras? Refugio-me
nas MINHAS mil atividades esquecendo-me que sou um mero instrumento nas mãos de
Deus e que tudo me foi dado para levar os homens a glorificar Deus? (cf.
Mt 5, 16) Perco-me em discussões e reuniões infinitas para disputar poder,
riqueza e reconhecimento, ou gasto a minha vida ao serviço de Deus nos pobres?
II. Estar atento à realidade que me envolve.
Qual é a minha presença no mundo que me envolve?
Uma presença superficial ou envolvo-me concretamente na promoção de um mundo
mais justo, quer a nível material quer a nível de valores? Os problemas do
mundo só me mobilizam quando de alguma forma ‘sofro na pele’ com eles? Discuto
e estudo, com outros, as mudanças do mundo e das pessoas? Concretizo possíveis
soluções para resolver os problemas encontrados? Avalio a minha ação e abraço
novas respostas, caso seja necessário? Visto a camisola da defesa dos direitos
humanos e colaboro diretamente com associações ou movimentos que promovem a paz
e a justiça?
III. Aprender com os pobres.
Os pobres são para mim uma verdadeira e constante
escola de evangelização, ou tenho faltado às aulas? Os pobres são uma realidade
artificial e relativa, pois nenhum é pobre o suficiente para me fazer “sair
do sofá” ou em todas as pessoas posso encontrar formas de pobreza que
justificam o meu “trabalho constante” com os pobres? Para melhor os ajudar
tenho de sentir na pele as suas dificuldades. Vivo a pobreza? Como faço para
experimentar as condições dos pobres? Aceito as condições/condicionantes das
missões que faço? Adequo-me ao lugar onde estou, utilizando os meios que estão
à minha disposição? Vivo como aqueles a quem sirvo, de forma a servi-los, ou
escandalizo os outros com o meu modo de viver? Os grupos, movimentos,
paróquias, associações, nas quais estou inserido, e que se dizem vicentinas,
têm o pobre como seu carisma? Reconheço-me pobre diante de Deus oferecendo-Lhe
toda a minha vida, a vida de todos aqueles que sirvo e a vida de todos aqueles
que não têm quem reze e olhe por eles?
IV. “O Senhor...enviou-os dois a dois”
São os ‘meus’ pobres e a ‘minha’ missão, ou tudo o
que faço é em nome da minha comunidade ou do meu grupo? O que sabem os outros
da missão que faço? Quanto me interesso pelo trabalho desenvolvido pelos meus “companheiros
de caminho”? São Vicente pensou sempre no trabalho em equipa, em
comunidade, e qual é a minha postura? Bloqueio o trabalho com aqueles com quem
devo trabalhar? Construo pontes no trabalho de equipa valorizando cada um, como
é, para um trabalho frutuoso em conjunto, ou construo muros para que tudo o que
faça tenha apenas um protagonista: eu próprio? Apresento-me com uma atitude
construtiva, de permanente descoberta e aprendizagem, como uma esponja que tudo
absorve para ser útil aos outros, ou encontro-me sempre fechado, cheio de
certezas, intransigente face a opiniões diversas da minha, como uma rocha
impermeável que tantas vezes é arremessada? Fomento o diálogo, a contestação, a
participação nas decisões, a divisão de responsabilidades? Quando sou
responsável por um grupo ou comunidade procuro desenvolver e estimular as
qualidades de cada um dos seus membros? Animo o seu crescimento espiritual e
ajudo a gastarem as suas vidas por Jesus Cristo, ou exerço a minha autoridade
de forma implacável, absorvendo todas as tarefas e limitando responsabilidades
individuais, tornando todos reféns da minha presença/decisão e com medo de
caminharem pelos próprios pés.
V. Não sou daqui nem dali, mas de onde Deus
quiser que eu esteja.
Sou o rosto e a alma do trabalho que faço ou deixo
que Cristo assuma esse lugar? Sou uma pessoa desprendida e livre, ou apodero-me
das tarefas que me foram confiadas e preocupo-me em manter, a todo o custo, a
minha posição? Sou uma pessoa disponível ou fechada? São Vicente apelava, às
irmãs, que tivessem por mosteiro a casa dos doentes, por cela um quarto de
aluguer, por capela a igreja paroquial, por claustro as estradas da cidade… A
mim, o que diria São Vicente? Diria que estou acomodado? Que procuro uma vida
fácil, inserido nas estruturas existentes e pré-definidas? Que procuro fazer
tudo sempre da mesma forma porque ‘se fez sempre assim’? Que não quero
renovação, porque os mais novos não me percebem, não me respeitam, não sabem fazer
bem as coisas? Diria que não quero deixar as responsabilidades que me foram
atribuídas há anos? Que não quero mudar de grupo, fingindo que ainda me
enquadro? Que não quero mudar de comunidade, porque é aqui que estão os meus
amigos ou família? Vivo para a minha ‘capelinha’ ou realmente vivo para a
missão de Cristo? Procuro refletir sobre o futuro e ajudar no crescimento
universal da missão, ajustando-me e vendo nas mudanças uma oportunidade de
manter viva a chama do carisma vicentino, ou, pelo contrário, perco-me em lutas
e esquemas para manter-me onde quero e como estou, assumindo o lugar da
Providência?
VI. Conversão: um caminho para a vida!
Qual a minha relação com Deus? Como vai o meu
caminho de conversão: estou parado? “Não vos acomodeis a este mundo. Pelo
contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para
poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é
agradável, o que é perfeito.” (Rm 12, 2) Como aprofundo a minha
configuração a Cristo? Como sigo o exemplo de São Vicente de Paulo? Aprofundo a
minha paixão pelo Santo da Caridade? Com que frequência, bebendo da fonte, me deixo
seduzir e estimular pelas palavras de São Vicente? Como posso seguir ao encalço
do seu exemplo, como seguidor de Cristo, sem me esforçar a cada dia por
conhecer melhor o seu pensamento? Se eu não deixar Jesus brilhar através de
mim, se a chama do meu carisma tem falta de combustível, como posso atrair
outros à beleza deste caminho?
Francisco Vilhena