Carta
do Santo Padre Francisco à
Família Vicentina para
a festa de São Vicente de Paulo 27 setembro de 2017
Queridos irmãos e irmãs
Na
ocasião do 4º centenário do carisma que deu origem à vossa Família, gostaria de
unir-me
a vós com palavras de gratidão e incentivo e, ressaltar o valor e a atualidade
de
São
Vicente de Paulo.
Ele
esteve sempre a caminho, aberto ao conhecimento de Deus e de si mesmo. A esta
busca
constante se implantou a ação da graça: enquanto pastor, ele teve um encontro
fulgurante
com Jesus Bom Pastor, na pessoa dos pobres. O que pode ser constatado
especialmente
quando ele se deixou sensibilizar pelo olhar de um homem sedento de
misericórdia
e pela situação de uma família em extrema precariedade. Neste momento,
ele
percebeu o olhar de Jesus que o desnorteou e o convidou a não mais viver para
si
mesmo,
mas para servi-Lo sem reservas nos pobres, os quais, mais tarde, Vicente de
Paulo
chamaria: “nossos senhores e mestres” (Correspondência, conferências,
documentos,
XI, pág. 402). Então, sua vida se transformou em um serviço constante até
seu
último suspiro. Uma Palavra da Escritura deu sentido para sua missão: “O Senhor
me
enviou para evangelizar os pobres” (cf. Lc 4,18).
Com
o desejo ardente de tornar Jesus conhecido aos pobres, ele se consagrou
intensamente
ao anúncio, sobretudo através das missões populares, e prestou especial
atenção
à formação dos Padres. Utilizava de forma natural um “método simples”: falar,
primeiramente
por sua própria vida e, em seguida com uma grande simplicidade, de
modo
familiar e direto. O Espírito fez dele um instrumento que suscitou um impulso
de
generosidade
na Igreja. Inspirado pelos primeiros cristãos que tinham “um só coração e
uma
só alma” (At 4,32), São Vicente fundou as “Caridades”, a fim de cuidar dos mais
necessitados,
viver em comunhão e colocar à disposição seus próprios bens, na alegria,
com
a certeza de que Jesus e os pobres são os tesouros mais preciosos e que, como
gostava
de repetir, “quando vais aos pobres, encontras Jesus”.
Este
pequeno “grão de mostarda”, semeado em 1617, fez germinar a Congregação da
Missão
e a Companhia das Filhas da Caridade, ramificou-se em outros Institutos e
Associações,
tornou-se uma grande árvore (cf. Mc 4,31-32): vossa Família. Mas tudo
começou
por este pequeno grão de mostarda: São Vicente jamais quis ser um
protagonista
ou um líder, mas um “pequeno grão”. Ele estava convencido de que a
humildade,
a doçura e a simplicidade são condições essenciais para encarnar a lei da
semente
que morrendo gera vida (cf. Jo 12, 20-26), esta lei que, somente ela, torna a
vida
cristã fecunda, esta lei pela qual é dando que se recebe, encontra-se perdendo
e
irradia
escondendo-se. Igualmente, ele tinha a convicção de que não era possível fazer
tudo
sozinho, mas juntos, enquanto Igreja e Povo de Deus. Gosto muito de lembrar a
este
respeito a sua intuição profética da valorização das qualidades excepcionais
femininas
que se manifestaram na fineza espiritual e sensibilidade humana de Santa
Luísa
de Marillac.
“Cada
vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o
fizestes”
(Mt 25,40) diz o Senhor. No centro da Família Vicentina, há a busca pelos “mais
pobres
e abandonados”, com a consciência profunda de ser “indignos de lhes prestar
nossos
pequenos serviços” (Correspondência, conferências, documentos, XI, pág. 402).
Desejo
que este ano de ação de graça ao Senhor e de aprofundamento do carisma seja
a
ocasião de beber na fonte, de restaurar-se no manancial do espírito das
origens. Não
esqueçais
que das fontes de graças nas quais bebeis, brotaram corações sólidos e
firmes
no amor, “modelos insignes de caridade” (Bento XVI, Carta Encíclica Deus
caritas
est,
40). Levareis o mesmo vigor, tão somente voltando o olhar ao rochedo de onde
tudo
brotou. Esta rocha é Jesus pobre, que pede para ser reconhecido naquele que é
pobre
e sem voz. Pois ele está aqui. E vós, quando encontrardes existências frágeis,
despedaçadas
por passados difíceis, por vossa vez, sois chamados a ser rochas: não a
parecer
duros e inabaláveis, nem a mostrardes insensíveis aos sofrimentos, mas a
tornardes
pontos seguros de apoio, sólidos diante das contingências do tempo,
resistentes
às adversidades, porque “olhais para a rocha da qual fostes talhados, para a
cova
de que fostes extraídos” (Is 51,1). Assim, sois chamados a ir às periferias da
condição
humana para aí levar, não vossas capacidades, mas o Espírito do Senhor, “Pai
dos
pobres”. Ele vos dissemina amplamente no mundo como sementes que crescem
em
uma terra árida, como um bálsamo de consolação para aquele que está ferido,
como
uma flama de caridade para aquecer tantos corações frios pelo abandono e
endurecidos
pela rejeição.
Em
verdade, todos nós, somos chamados a saciar nossa sede no rochedo que é o
Senhor
e a saciar o mundo com a caridade que vem dele. A caridade está no coração
da
Igreja, ela é a razão de sua ação, a alma de sua missão. “A caridade é a via
mestra da
doutrina
social da Igreja. As diversas responsabilidades e compromissos por ela
delineados
derivam da caridade, que é – como ensinou Jesus – a síntese de toda a
Lei”
(Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in veritate, 2). É a via a seguir, a fim de
que a Igreja
seja
sempre mais, mãe e mestra da caridade, com um amor cada vez mais intenso e
transbordante
entre vós e para com todos os homens (cf. 1Ts 3,12): concórdia e
comunhão
no interior da Igreja, abertura e acolhimento no exterior, com a coragem de
renunciar
o que pode ser uma vantagem, a fim de imitar em tudo seu Senhor e de
encontrar
plenamente a si mesmo, fazendo da aparente fraqueza da caridade a única
razão
de seu orgulho (cf. 2Cor 12,9). De uma grande atualidade, as palavras do
Concílio
ressoam
em nós: “Cristo Jesus [...] ‘sendo rico, fez-se pobre’. Assim também a Igreja,
embora
necessite dos meios humanos para o prosseguimento da sua missão, não foi
constituída
para alcançar a glória terrestre, mas para divulgar a humildade e abnegação,
também
com o seu exemplo. Cristo foi enviado pelo Pai ‘a evangelizar os pobres’ [...].
De
igual modo, a Igreja abraça com amor todos os afligidos pela enfermidade
humana;
mais
ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre
e
sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta servir neles a
Cristo. (Concílio
Ecumênico
Vaticano II, Cost. Dogm. Lumen gentium, 8).
Foi
o que São Vicente realizou durante toda a sua vida e ele fala ainda hoje a cada
um e
a
todos nós, enquanto Igreja. Seu testemunho nos convida a estar sempre a
caminho,
prontos
a nos deixar surpreender pelo olhar do Senhor e por sua Palavra. Ele nos pede
a
pobreza de coração, uma total disponibilidade e uma dócil humildade. Ele nos
impulsiona
à comunhão fraterna entre nós e à missão corajosa no mundo. Ele nos pede
para
nos libertar das linguagens complicadas, dos discursos egocêntricos centrados
sobre
nós mesmos e de apegos aos bens materiais que podem nos tranquilizar de
imediato,
mas não nos dão a paz de Deus e, muitas vezes, são um obstáculo na missão.
Ele
nos exorta a investir na criatividade do amor, com autenticidade de um “coração
que
vê” (cf. Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas est, 31). De fato, a caridade
não se
contenta
com os bons costumes do passado, mas sabe transformar o presente. Ela é
cada
vez mais necessária hoje, na complexa mudança de nossa sociedade globalizada
onde
certas formas de auxílio e de ajuda, mesmo que justificados por intenções
generosas,
podem alimentar formas de exploração e de ilegalidade e, não produzir
progressos
reais e sustentáveis. Por esta razão, imaginar a caridade, organizar a
proximidade
e investir na formação são os ensinamentos atuais que nos vêm de São
Vicente.
Mas seu exemplo nos encoraja ao mesmo tempo a dar espaço e tempo aos
pobres,
aos novos pobres do nosso tempo, aos demasiados pobres de hoje, a fazer
nossos
seus pensamentos e suas dificuldades. O cristianismo sem contato com aquele
que
sofre se torna um cristianismo desencarnado, incapaz de tocar a carne de
Cristo.
Encontrar
os pobres, preferir os pobres, dar voz aos pobres a fim de que sua presença
não
seja reduzida ao silêncio pela cultura do transitório. Espero sinceramente que
a
celebração
do Dia mundial dos Pobres de 19 de novembro próximo nos ajude em
nossa
“vocação a seguir Jesus pobre”, tornando “cada vez mais e melhor sinal concreto
da
caridade de Cristo pelos últimos e os mais carenciados” e reagindo “à cultura
do
descarte
e do desperdício” (Mensagem para o 1º Dia Mundial dos Pobres “Não amemos
com
palavras, mas com obras”, 13 de junho de 2017).
Peço
para a Igreja e para vós a graça de encontrar no irmão faminto, sedento,
estrangeiro,
despojado de suas vestes e de sua dignidade, doente e preso, ou ainda,
indeciso,
ignorante, obstinado no pecado, afligido, grosseiro, mal-humorado e
importuno,
o Senhor Jesus; de encontrar nas feridas gloriosas de Jesus, a força da
caridade,
a felicidade do grão que, morrendo, gera vida, a fecundidade da rocha de
onde
jorra a água, a alegria de sair de si e de ir ao mundo, sem nostalgia do
passado,
mas
com a confiança em Deus, criativos diante dos desafios de hoje e do amanhã,
pois,
como
dizia São Vicente, “o amor é inventivo ao infinito”.
Do
Vaticano, 27 de setembro de 2017
Memória
de São Vicente de Paulo
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